Este conto aborda temas extremamente pesados e perturbadores, a própria autora ficou horrorizada com o que escreveu algumas vezes e teve que segurar o vômito em outras. Não recomendo a leitura para menores de 18 anos.
Se você tem traumas ou se sente desconfortável com cenas de aporofobia, violência extrema, misoginia, linguagem desumanizante, objetificação e sadismo, peço para que vá ler outra coisa minha, e por favor: não hesite em conversar com alguém e pedir ajuda se necessário.
Você importa, mesmo que discorde disso. Cuide-se.
A narradora deste texto jamais tivera visto um azul tão vibrante quanto o da Paranaguá no dia primeiro de Fevereiro de 2025. Não havia nuvens no céu, e os pássaros compunham suas belas melodias como nunca antes — Bem Te Vi! No Terminal Rodoviário, novos viajantes de trajes excêntricos chegavam e imediatamente se paralisavam sobre o caminho calçado de pedras cinzentas enquanto admiravam a paisagem da praça; jovens casais desesperados se repousavam sob as Palmeira-Imperial enquanto trocavam suas carícias diárias e idosos estavam sentados em bancos de madeira conversando sobre o ex-ministro Abraham Weintraub enquanto crianças sardentas utilizavam destes mesmos bancos como cenário de Parkour, o que irritava os idosos, que optavam por permanecerem quietos. Ah, e claro, havia homens e mulheres de peles imundas pedindo esmolas para todos que descrevi anteriormente. Ao meu ver, aquele conjunto de cabelos aterrorizantes e roupas encardidas assustava as mães, que imediatamente retiravam seus filhos de cima dos bancos — o que provavelmente dava paz aos velhinhos pela primeira vez na vida deles. Também havia outra mulher — mais emporcalhada do que os outros que pediam dinheiro, tinha um rosto feio —, essa estava deitada na frente da vitrine de um estabelecimento fechado e com o corpo totalmente coberto; estava morta.
Vamos ao que realmente importa, pelo menos para mim: Futebol. Poucas horas antes, o Rio Branco jogara e os torcedores estavam espalhados pela cidade, uns cambalheavam após apenas duas ou três latas de cerveja, outros faziam sexo com desconhecidas em becos desertos, também haviam os que observavam o caos aterrorizados e os que hostilizavam os pedidores de esmola — jogando até pedras —, mas geralmente, estes se limitavam a atacar apenas adultos que julgavam vagabundos e imprestáveis. Quando o céu azul estava começando a alaranjar, notei um homem de corpo malhado, cabelos e barbas escuras, óculos quadrados, de aproximadamente vinte e poucos anos imobilizando com os braços musculosos uma pequena criança que estava pedindo esmolas à seu amigo em uma rua deserta e encostou um canivete em sua garganta, este homem de aparência charmosa e juvenil se chamava Felipe.
A lâmina brilhosa constratava com o rosto encardido da criança tão jovem. O amigo do qual a criança havia pedido dinheiro era Lucas; raquítico, com uma camiseta e shorts pretos e um cabelo nevado na régua. Lucas desviava o olhar e parecia inquieto, apesar de ter idealizado a ameaça para Felipe, temia ser pego — sabe-se lá o que aquele traste tinha a perder. Propôs então um acordo com a criança: A dupla levaria a criança ainda agarrada como refém para seus pais — que provavelmente também eram pedintes — e os faziam prometer que jamais perturbariam as pessoas novamente, a criança logo respondeu que não tinha pai e sua mãe havia morrido há pouco mais de dois dias. Aquela pequena provavelmente torcia para ser morta, uma vez que demonstrava tamanha frieza diante da situação, e, claro, estava faminta. Reparei em dois homens idosos que observavam toda a cena, mas que se retiraram após Felipe começar a rir e perderam todo o espetáculo que viria.
Chega então um terceiro homem, Miguel, que fechava o trio com Felipe e Lucas e era o caçula do grupo — também o mais bonito —, usava uma camisa polo vermelha, tinha mandíbula e maxila bem definidos, olhos pequenos e amendoados, cabelos ondulados e um andar desajeitado. Ao avistar o amigo, Felipe imediatamente larga a criança e Lucas dá um chute em suas costas, que sai correndo. Miguel até perguntou o que diabos estavam fazendo, mas não recebeu nada além de respostas vagas.
Já ao nascer da noite, Lucas então sugere com uma animação quase que infantil que o trio vá beber em uma taberna próxima e assim eles seguem. A narradora vai junto.
O céu noturno estava tão escuro que tornava impossível enxergar qualquer coisa acima de quarenta metros do solo. Os postes coloniais coloriam este preto de amarelo e visibilizava os três homens caminhando sobre a pedra portuguesa da cor branca. Lucas e Felipe entraram na taberna de imediato, ambos esbarrando com olhar de desdém em um jovem garçom de cabelos, espinhas e colete vermelhos, já Miguel parou por um instante após reparar em uma mulher dormindo na frente da vitrine do estabelecimento, que estava imóvel desde antes da partida do Rio Branco, mas logo entrou, piscando para a belíssima mulher ruiva que estava tomando um Drink perto da saída.
Os três mosqueteiros sentaram-se à uma mesa de madeira rústica clara e começaram a pedir o que iam comer, Lucas queria uma porção de calabresas enquanto Felipe e Miguel queriam batata-frita. A dupla venceu: Batata-frita.
Miguel fez o pedido para o garçom de cabelos vermelhos, que estava visivelmente incomodado com a presença de Felipe e Lucas, mas não quis comentar nada. Enquanto esperavam o pedido, Lucas abriu o Instagram e sugeriu uma brincadeira a seus amigos: cada um mostrava a mulher com que estavam ficando (ou tentaram ficar). Antes da descrição da cena, permitam-me: eu não gostei do que vi, mas acho que todos nós já fizemos essa brincadeira do Instagram, não é? Quer dizer, julgo os homens e suas falas controversas, mas a nossa repulsa não altera o passado. Seguimos?
Miguel começou; mostrou no celular Illana, mulher ruiva, um pouco mais velha que ele — era a dama com que ele havia piscado ao entrar no bar —, Lucas logo elogiou a mulher, a chamando de "gostosa" para seus amigos, mas ao olharem para a saída onde ela estava, não a viram. Após mais alguns comentários sexualizando suas fotos entre Lucas e Felipe fazendo comentários sexuais, os dois riram um pouco de seus gostos estranhos; Lana tinha na sua Bio o arroba do cantor Hyunjin, sujeito da banda sul-coreana Stray Kids que soava "homossexual" para a dupla, e ao verem seus destaques gritando de emoção em um show do grupo em 2023, tornava inevitável pensar sobre o quão histérica Illana era. Depois, era a vez de Lucas, que apresentou Charlotte; mulher bonita, de cabelos castanhos claros e um pouco magra, Lucas não poupou xingamentos ao se referir a Charlotte, claramente era mais excêntrica do que Illana, uma música antiga na Bio e a ausência de um Feed repleto de fotos dava um ar de tola, Charlotte também se considerava uma escritora, mas nenhum dos três jamais tivera lido algo dela. O pior de tudo é que aparentemente, Charlotte era lésbica, o que tornava para Felipe impossível não ridicularizar Lucas, uma vez que para ele, Charlotte também era uma mulher de corpo bonito, claramente a moça perfeita para sexo dominador e violento — talvez violentá-la e no momento do clímax socar seu doce rosto. Miguel, que já estava quieto durante toda a dinâmica, saiu da mesa para fumar do lado de fora, ninguém entendeu bem o porquê. Depois, Felipe apresentou Jolie, o que escancarrou para Lucas a hipocrisia do amigo que criticava as outras duas mulheres, pois para ele, Jolie parecia ridiculamente feia, com cabelos curtos de homem e que diferentemente das outras duas, tinha um peso muito maior, que destruía qualquer resquício de feminilidade e não a fazia servir nem para a violência segundo a dupla, diferentemente de Charlotte e Illana.
O ponto mais interessante que reparei aqui, é como sou bem parecida com Charlotte e Illana. Meus cabelos são longos, lisos e ruivos, o que lembra bastante Lana. Já sobre Charlotte, acho o corpo dela semelhante ao meu. Claro, eu sou mais bonita, mas é interessante reparar que tenho o “corpo perfeito” para Lucas, Felipe, e claro: Miguel, não acha?
À direita da entrada do bar, Miguel frequentemente se afogava com a fumaça do próprio cigarro, tentava segurar a tosse. Bem, eu não fumo, mas acredito que isso só piorava o estado do homem. À sua esquerda, próxima a vitrine do estabelecimento, estava agachada e de costas uma ruiva que vomitava no chão de pedras, seus longos cabelos encobriam todo o seu corpo enquanto estava agachada, o que tornava impossível identificar quem era a moça. Miguel ora encarava a ruiva, ora olhava para a noite preta, pensando se deveria checar se a mulher estava bem ou se continuava fumando (ou tentando).
Passaram-se oito minutos e os dois continuavam fazendo exatamente as mesmas coisas sob aquelas luzes amarelas — a mulher vomitava incansavelmente, o homem encarava a mulher enquanto fumava e pensava, mas não agia. Saiu do bar Lucas, de mãos dadas com uma mulher que Miguel não conhecera, provavelmente que Lucas havia acabado de conhecer. Ambos pareciam apressados, com passos largos e sem reparar em Miguel, que continuava fumando.
Passaram-se quatro minutos. Tudo se mantinha exatamente igual. Agora, os vômitos tinham intervalos maiores entre eles e Lucas e a mulher de intenções desconhecidas haviam sumido do campo de visão de Miguel. O odor começava a se propagar intensamente.
Passaram-se dois minutos e tudo se mantinha como era; Miguel próximo à entrada e a moça à sua esquerda. O céu continuava preto, as luzes continuavam amarelas, mães choravam de alegria pelo nascimento de seus filhos enquanto outras choravam a morte dos primogênitos. A terra continuava azul, a lua branca como Deus, e as sombras dos homens ainda eram maiores do que sua compaixão.
Um minuto se passou e o odor era insuportável. Não há sentido e simbolismo para se retirar daqui. Recomendo que não faças isto no resto do texto. Na verdade, se pudesse lhe dar um conselho, falaria para você sair daqui. Tudo aqui é doentio e eu não sei ao certo porque estou fazendo isto. A autora deste texto — que não conheço — já escreveu contos muito mais belos sobre o amor e os sentimentos individuais. Não acho que vá ficar aqui, mas se sua mente acredita por algum motivo que deve terminar a história, saiba que uma criança morrerá intoxicada e eu não darei detalhes de como sua morte foi lenta e dolorosa. Não é isto que você quer ler.
Trinta segundos se passaram e a ruiva finalmente parou de vomitar, mas continuou na mesma posição, com seu cabelo cobrindo todo o corpo. A narradora deste texto se encontra exausta com a omissão do homem de camisa Polo e enquanto nada acontece, deseja conversar sobre assuntos menos desumanizantes, não como narradora, mas como amiga: você, caro leitor, já leu a Bíblia? Digo, não apenas os versículos soltos que páginas evangélicas postam no Instagram ou a série The Chosen com aquele ator bonito que “interpreta” Cristo, mas ler a bíblia de verdade, o extenso livro que começa e termina com uma árvore e que para os cristãos, contém a "palavra de Deus". Se sim, o que você achou?
A narradora adoraria aprofundar a reflexão que iria fazer sobre a Bíblia, e depois, conversar com você sobre a suposta homossexualidade de Da Vinci, a biodiversidade presente no segundo trailer do jogo GTA 6 e a música Money for Nothing da banda Dire Straits, mas finalmente, Miguel agiu.
Ao se aproximar da moça ruiva, optou por cutucá-la com os dedos indicador e médio, ela não virou a cabeça. Passaram-se cinco segundos e Miguel tentou de novo; ela ainda não virou para trás. Passaram-se quatro segundos e Miguel tentou pela terceira vez. Ela finalmente saiu da posição em que estava, sentando com as pernas abertas em direção a Miguel e ao lado da vitrine onde estava, foi quando ele conseguiu ver o rosto da mulher: era Illana. Perguntou se estava bem e ela prontamente respondeu que havia bebido demais; Neste momento, Illana fez mais alguns comentários sobre alguma coisa que Miguel não conseguiu prestar atenção, pois começou a encarar a mesma mulher dormindo que havia reparado anteriormente, ela estava quase que totalmente coberta e tudo que se podia ver era seu rosto, que estava sujo. Aquela mulher estava pálida e como Miguel já havia passado por alí antes do jogo, percebera que não havia acordado.
A voz de Illana parou de ecoar e o silêncio absoluto tomou conta. Miguel não percebeu, mas seu olhar fixo na mulher coberta era tão perturbador que seria impossível Illana não perceber. Agora, ela também estava olhando, quase que tão perplexa quanto ele. Illana logo saiu da sua posição confortável e foi tocar na mulher — com os cinco dedos —, tirou as cobertas do corpo da mulher e encontrou ao seu lado um relógio de bolso antigo e uma regata azul de criança, não obteve resposta na sua primeira tentativa, deu um leve tapa no rosto da mulher e ainda não recebeu quaisquer reações; bastou checar seus batimentos cardíacos, colocando a mão em seu coração, e assim, obteve o diagnóstico final: estava morta.
Dado a gravidade da situação, seria esperado que os dois gritassem de desespero ao ver um cadáver, e após o desespero, chamariam a ambulância, ou a polícia, ou sabe-se lá o que se deve chamar ao encontrar um corpo morto (nota da narradora: você deve ligar imediatamente para a Polícia Militar [190]), mas não foi o que ocorrera. Ao constatar que a mulher — que muito que provavelmente era mãe, considerando a regata azul que claramente não era dela — estava realmente morta, Illana começou a chorar em frente ao corpo e em seguida agachou e seus longos cabelos cobriram todo seu tronco novamente — desta vez não pelo vômito, mas pelo horror. Também pela segunda vez, Miguel ficou divido entre duas opções: consolar Illana ou avisar o dono do estabelecimento. Assim, Miguel começa a encarar a mulher ruiva agachada de costas para ele e o mesmo loop que tanto cansou a narradora anteriormente se iniciaria novamente.
Temo me tornar alguém que apenas repete o que já há segredo, mas este cadáver é de uma mãe, que já teve uma mãe, que possivelmente lhe ensinou sobre a vida; Não posso deduzir que ela ensinou ou não sobre o alfabeto, a tabuada ou os animais marinhos, mas é bem provável que ela tenha recebido da mãe a educação de como o mundo era e como sobreviver a ele. Também me pego pensando se você apenas “leu” quando eu disse que havia achado uma mulher morta feia, ou se imaginou um rosto — provavelmente de uma pessoa real — em sua mente. Mas não acho que pessoas mortas importam de alguma maneira, acredito que concorde comigo, não é?
Passaram-se quarenta e quatro segundos e trinta centésimos de segundos e Illana permanecia imóvel e chorando, repetindo expressões como “meu Deus” em uma altura tão baixa que Miguel não podia ouvir. Aqui, a narradora retomaria seu pensamento sobre a Bíblia que gostaria de abordar, mas desta vez, não demorou muito para Miguel agir; entrou no estabelecimento e olhou ao redor procurando algum funcionário da taberna, em um dos cantos, estava uma mulher de coletes vermelhos que parecia trabalhar lá, mas estava ocupada, dançando com Felipe, sabe-se lá como. Enquanto encarava de longe a cena perplexo, Miguel acabou sendo surpreendido ao ser esbarrado por um homem que parecia apressado, era o funcionário de cabelos vermelhos. Miguel segurou nos braços do garoto com força para impedir que continuasse o que fazia e imediatamente comunicou que havia um cadáver na vitrine de seu estabelecimento, o menino, que parecia conhecer Miguel — e também Lucas e Felipe, pois havia demonstrado desconforto com a presença de ambos —, deu uma ordem imediatamente: ajude-me a esconder o corpo.
Era uma manhã quente e Miguel não conseguia se imaginar em um quarto sem o ar-condicionado sobre sua cabeça. As paredes eram cinzas e o quarto estava tão bagunçado que é impossível para mim descrever a cena com precisão. Miguel levantou da cama; usava um tapa-olho de pirata e parecia manco, pegou o celular que estava no topo do armário usando uma cadeira como apoio e deitou em sua cama novamente. Passaram-se dias desde os acontecimentos do dia primeiro de Fevereiro de 2025 e seu celular estava lotado de notificações de mensagens de Illana.
Miguel jamais respondera as mensagens de imediato, lia o que estava escrito, mas demorava a dar um retorno — antes pensava sobre tudo, como uma espécie de preparo psicológico —, e antes que questionem, não havia nada de grandioso nas mensagens. Então, Miguel abriu o Instagram. A primeira foto que vê é de Lucas com sua família: a mãe, sua irmã mais nova, e o pai. Depois rolou mais um pouco pelo feed do aplicativo e se deparou com homens gordos de vestidos sendo ridicularizados, uma criança sem os dois braços ganhando os mais cruéis apelidos, um vídeo de vítimas da explosão em um posto de gasolina desfigurados e agonizando até a morte, e uma vereadora que planejava criminalizar a denúncia de atos violentos contra moradores da periferia, mas uma das violências em específico chamou sua atenção: uma professora transgênero preta, magra e de cabelos escuros alisados era ridicularizada em um perfil de humor local de Paranaguá. A moça usava um vestido de fada na creche onde trabalhava, o que sugeria para os odiadores alguma expressão perversa contra as crianças, e esta era a manchete da publicação, que ignorava completamente o grande cartaz onde estava escrito "festa de fantasias" atrás da professora.
A narradora também já se deparou com conteúdos parecidos ao abrir o Instagram. Claro, é doentio, mas eu não acho que me meteria em brigas de Internet por achar que algo é errado ou certo.
Miguel agiu. Claro, passaram-se alguns minutos enquanto ele encarava a tela, pensava em quem aquela mulher fantasiada era e após isto leu todos os comentários odiosos (o que totalizava todos os comentários) da publicação, mas agiu. Solitário, comentou que talvez, ele ou ela só estava vivendo sua vida e educando crianças, e que muito provavelmente, nn era a criatura q os homens haviam criado em suas cabeças.
Recebeu a sua única curtida de uma mulher de cabelos curtos, lábios carnudos e gorda que ele não conhecia. Também recebeu quarenta e uma respostas naquele comentário. Todos dizendo as mesmas coisas perversas sobre a professora e sobre Miguel, mas com palavras diferentes. Alguns lotados de coloquialismos, chamando Miguel de “viadinho” e respondendo com a bandeira do orgulho acompanhado um ponto de interrogação, outros com uma escrita quase que intelectual, associando a linguagem de Miguel — que trocava “não” por “nn” e “que” por “q” — com falta de visão de mundo e provando com argumentos aparentemente ultra-lógicos que o tal homem fantasiado de mulher fantasiada de fada para divertir os alunos era uma aberração e merecia ser enviado para algum campo de concentração.
Por curiosidade: o nome da professora era Iara, com “I” e não “Y”. Era formada em pedagogia e além de professora de creche, tinha um projeto de ajuda humanitária para os moradores em situação de rua de Paranaguá, mas isto é história para outro dia.
Três dias depois, a narradora viu Paranaguá gelada, mesmo que em pleno verão. O céu completamente branco não encantava os turistas, e não haviam casais trocando carícias na praça tampouco haviam idosos e crianças. A única pessoa sobre os bancos naquele dia era Charlotte. Ela usava um longo vestido de mangas compridas, com um grosso cinto vermelho por cima de tudo. Charlotte estava de braços cruzados enquanto admirava o rio Itiberê. Do outro lado, a beleza das árvores de Mangal hipnotizavam a moça, que torcia para o céu branco não acizentar.
Imóvel há horas, Charlotte ouviu passos à sua direita, lá estava ele: Miguel usava seu tapa-olho e um longo sobretudo azul-desbotado fechado. Charlotte, que ocupava o centro do banco, moveu-se para a esquerda, a fim de dar espaço para Miguel, que curiosamente optou ficar do lado de Charlotte, mas em pé. A mulher até perguntou se Miguel gostaria de falar o que queria falar, mas ele não respondeu, quem estava hipnotizado com a paisagem agora era ele.
Passaram-se quatro minutos e Miguel interrompeu o silêncio perguntando à Charlotte se ela já tinha lido a Bíblia, que respondeu positivamente, mas que não lembrava muito bem do Antigo Testamento. Em seguida começaram a conversar sobre o App Substack, que Charlotte recentemente havia baixado e Miguel não conhecia. Depois falaram sobre a biodiversidade do segundo Trailer do Jogo GTA 6, a suposta homossexualidade de Leonardo Da Vinci e como Charlotte estava viciada na música Money for Nothing da banda Dire Straits, quando os assuntos acabaram, retorna-se o silêncio e Miguel se sentou ao lado de Charlotte.
Visivelmente nervosa, Charlotte rompeu o silêncio, comentando que Illana havia contado a ela o que eles fizeram na noite do dia primeiro de Fevereiro. Charlotte confessa que não sabe se teria a coragem de fazer o que Miguel fez. O homem de sobretudo simplesmente ficou quieto e ignorou o comentário dela, começando a pentear os cabelos com os dedos, mas poucos segundos depois, seu único olho estava vermelho e era impossível negar que estava se segurando para não chorar. Ao ver a cena, Charlotte começou a hostilizar o homem, relatando que não há redenção tanto para ele quanto para seus amigos. Miguel gritou que estava tentando com todas as suas forças e levantou furioso, começando a andar em círculos ao redor do banco, o que fez Charlotte perceber que deixou ele nervoso e devia se calar.
Passaram-se quinze segundos e Charlotte não conseguiu manter o silêncio; comentou que não sabe o que fazia alí, e Miguel repetiu a resposta de antes. Começou-se uma longa conversa com o tom de discussão que rapidamente se tornou tediosa: de um lado, Charlotte se defendia enquanto se contia cada vez mais no banco, do outro, Miguel tentava se justificar em pé se aproximando cada vez mais de Charlotte. A narradora se recusa a descrever uma cena problemática pela centésima vez em um único conto, então para aumentar o número de palavras do texto, falará dos detalhes que compunham a cena: dez metros atrás do banco, havia uma caçamba de lixo amarela que continha uma impressionante torre de sacolas pretas com mais de cinco metros de altura — Detalhe que no momento em que a torre começou a balançar com o vento, Charlotte levantou do banco e começou a brigar com Miguel em pé. Enquanto a briga continuava, algumas baratas saíram da caçamba rapidamente, como se estivessem com medo de algo. Então, aparece no topo da torre uma ratazana maior do que qualquer gato que a narradora já viu. A cena era peculiar: a ratazana parecia estar em um grande altar, vendo a briga de dois seres humanos como se entendesse o que estava acontecendo.
A ratazana tentou se mover e acabou despencando, levando consigo as duas sacolas de lixo mais altas da torre, que acabaram caindo sobre o pobre animal na caçamba. A briga havia se acalmado e Charlotte estava sentada no banco novamente, mas a narradora ainda não quer falar sobre isto. Alguns segundos depois, passa uma criança cambaleando atrás do banco; era a mesma hostilizada por Lucas e Felipe, mas desta vez, ela estava com o rosto mais imundo e o corpo mais magro. Ela usava uma regata azul, que mesmo sendo infantil, ficava gigante nela. Nesta hora, a discussão entre Charlotte e Miguel voltou a ferver, com a mulher se levantando do banco novamente. A criança parecia tão atordoada que sequer ouviu os gritos, em vez disto viu a caçamba e não hesitou em enfiar suas duas mãos no lixo. Detalhe que a criança não viu nenhuma ratazana ou rato — provavelmente a ratazana caída estava mais ao fundo —, apenas baratas, que foram ignoradas. A criança então tirou da caçamba uma porção de camarões fritos e engoliu todos de uma única vez. Em seguida, foi embora, cambaleando menos do que anteriormente, ela parecia muito melhor. Há esta hora, a discussão havia acabado com Charlotte saindo andando rapidamente e Miguel gritava para ela se acalmar.
Não falarei o que aconteceu com a criança, quer dizer: você já sabe, mas eu não descreverei uma cena extremamente vívida relatando a história. A mesma coisa que fiz com a ordem do garçom, se ela foi obedecida ou rejeitada, não acho que importe, afinal, ela estava morta, não é? E não adianta reler esta barbárie várias vezes procurando significados, me certifiquei de ocultar todos porque gosto de deixar pessoas pensativas.
Miguel agora estava só. Enquanto caminhava, reparou que o céu começava a escurecer, e que eventualmente choveria. Piscou para uma mulher pouco mais nova que ele, de cabelos loiros e médios, que surpreendente, piscou de volta para o caolho. Miguel entrou no primeiro bar que viu; um lugar simples, apertado e bagunçado, com uma entrada discreta e quase invisível aos olhos desatentos. Comprou um refrigerante da Coca-Cola e ia aproveitar seu tempo antes da tempestade em uma mesa de plástico preta na frente do bar, mas enquanto limpava a cadeira com as mãos antes de sentar à mesa, avistou um morador de rua sentado em frente da porta do estabelecimento fechado ao lado.
Por algum motivo, Miguel decidiu que iria lá. Sentou-se ao lado do homem e começou a conversar com ele; um sujeito velho, mas sem longas barbas e cabelos como a maioria das pessoas em situação de rua que ele conhecerá. Inicialmente, Miguel se mostrou desconfortável por ter sujado seu sobretudo, mas rapidamente esqueceu do assunto e se interessou pelas idéias e boa oratória do homem velho. Ele dizia que em breve, voltaria para casa, sem especificar que casa voltaria, como faria isso, e como saiu de casa, mas o sujeito parecia entusiasmado.
Se me permitem dizer, aquele homem não merecia estar lá; nenhuma pessoa merece. Mas está, e sete dias depois da conversa com Miguel, perecerá exatamente na mesma frente de estabelecimento onde estava. Sei que você deve me odiar, e com razão. Apesar de não saber meu nome, quem sou e tudo que você conhece de minha aparência são meus cabelos e porte físico, você não precisa saber de nada para me odiar. Sou uma mulher mórbida e cruel, mas nós duas sabemos muito bem que não fui eu quem escreveu isto daqui. Não sou a mulher perfeita e preciso urgentemente de aulas para tornar minhas narrações mais profissionais e menos opinativas, mas eu não criei o que escrevo, apenas relato o que uma escritora imaginou e desejou colocar no papel. Pode continuar me odiando, mas saiba que existem pessoas que merecem muito mais rancor.
As primeiras gotas brancas caiam do céu, já antecedendo a grande tempestade que viria depois. As últimas pessoas que ainda perambulavam nas ruas desapareceram como mágica e a Coca-Cola que Miguel havia tomado havia acabado. Novamente, não há simbolismo nenhum aqui. Miguel, olhou diretamente nos olhos do homem e perguntou:
— Do que você precisa?