Do que você tem medo?
Sempre recebo o mês de junho com altas expectativas; mesmo que nada mude e o sofrimento permaneça, acredito que a esperança é uma escolha, algo que me protege dos temores e da incerteza. Deve ser impossível viver sem a esperança, uma vez que sem ela, o indivíduo entra em sofrimento tão intenso que cogita o suicídio como uma opção tão natural como a decisão de não tomar café. No meu caso, junho é recebido com esta fé por ser o mês de meu aniversário, e mesmo que eu sequer lembre de quando recebi os parabéns de mais de duas pessoas no mesmo dia, ainda escolho a animação — eu espero o grande dia como uma criança hiperativa, e quando o dia chega, sinto vontade de abraçar até o padeiro fedorento do nariz enrugado. Entre todas as esperas e todas as euforias, lembro de uma em específica; faltavam duas noites para a meia-noite que viria com a celebração, mas o dia anterior a esta noite não foi bom.
Aos primeiros sopros de luz pela manhã, eu tinha saído do meu cubículo na capital e caminhado até a moradia de quem eu até então considerava a minha esposa — Eu acordei animada para o eventual encontro que ocorreria —, como não havia espelho em meu apartamento, optei por me checar pela câmera do celular; meus cabelos lisos e ruivos estavam um pouco mais volumosos do que o normal, minha blusa que antes tinha um marrom vivo começara a escurecer e as mangas longas pareciam desgastadas, assim como minhas sobrancelhas eriçadas, e mesmo reparando em tudo isto antes de sair, escolhi deixar tudo como estava, uma Dulce Elpídio sem filtros, apenas eu. O clima gelado e os rostos tristes constratavam com o céu azul e as folhas verdes caindo das árvores e colorindo as calçadas cor-de-cinzas, mas ao mesmo tempo, estava em harmonia com as memórias em minha mente: crianças enforcadas, pessoas cruéis, trabalhos falhos, homens e mulheres chorando por dores muito maiores do que eles, e corpos famintos e sedentos por justiça.
O verde em meio a névoa não era exclusividade das folhas de árvore; o carro de minha esposa também se destacava em um trânsito preto e branco — este carro da cor de perereca-limão era tão excêntrico que todos olhavam, independente do local —, naquele dia, o carro estava imundo e nós iamos viajar com ele até Caçador para comemorar meu aniversário, então, enquanto esperava na calçada minha mulher se arrumar, por que não uma brincadeira? Desenhei com os dedos tudo o que acreditava não existir em minha cabeça: corações, um "eu te amo" em Copperplate, uma abelha, um gato fofo e uma família de três porcos se amando. Em meio a tanta dor e desgraça, acho que naquele momento, esperava uma reação fofa, um elogio ou um beijo, com tanto sofrimento em meu trabalho, eu merecia isso mais do que qualquer um, o reconhecimento de minha ternura por trás de olheiras maiores do que os olhos. Lembro que fui imediatamente repreendida depois por tal ato que poderia danificar a pintura ou manchar o carro — coisa que eu não entendi, uma vez que aquele carro estava imundo —, meu sorriso largo que certamente era muito mais do que uma expressão se transformou em um esforço para segurar o choro durante toda a viagem, enquanto minha esposa sequer reparou nos meus olhos vermelhos e postura rígida.
Um dia depois: as vésperas da celebração, o planejado era que eu estivesse animada, mas o evento anterior ainda ecoava em mim.
Já em Caçador, as imagens gráficas de meu trabalho começaram a me perturbar com uma frequência muito maior; daquela vez, eu estava em uma viagem onde supostamente deveria me distrair, coisa que minha mente se recusa a permitir, então a memória: Três meses antes, uma de minhas pacientes de apenas oito anos havia se enforcado. dois dias depois, os pais indignados foram à clínica onde trabalho para despejarem o ódio em mim e na terapeuta ocupacional que trabalha comigo, e claro: não há reconhecimento e fama que retire de minha alma uma acusação de assassinato.
Enquanto minha esposa dormia, aproveitei para pesquisar o que havia acontecido com o casal. Não havia nada nas redes sociais de ambos desde a morte da filha, mas investigando a última pessoa que a esposa seguiu antes de sumir, descobri que ela havia se divorciado do marido e se mudado para um vilarejo remoto no coração de Minas Gerais, onde todas as casas eram amarelas ou pretas e no meio da vila, havia uma espécie de pirâmide que era idêntico a um ferrão. Era uma dinâmica similar à uma civilização de Hippies. Já o homem começou a trabalhar em um apiário e havia se tornado evangélico, e seu pastor era um garoto excêntrico de 13 amos, este que se dizia Cristo reencarnado. As duas mudanças me pareciam muito radicais para um período de três meses, tanto que no futuro, já divorciada da minha esposa, fui atrás dos dois separadamente — primeiro encontrei o homem, e depois viajei em busca da mulher —, mas isso é história para outro dia.
Também me lembrei de outro conflito que tive, desta vez, diretamente com a paciente: seis meses atrás uma mulher começou a me culpar por sua falta de sucesso na vida e me tratou com palavras tão cruéis que me recuso a repetir. Ela foi denunciada e ficou incrédula com a minha absolvição quase que instantânea das denúncias que a mesma havia feito, o que só aumentou o ódio e perseguição contra minha pessoa. Há coisas que tenho medo de admitir, estas coisas que me fazem repudiar a mim mesma, mas ainda me contaminam, então preciso comentar: eu senti ódio daquela mulher, não apenas por sua crueldade, mas também comecei a reproduzir pensamentos discriminatórios em relação a sua cor e peso, jamais tive coragem de admitir esse preconceito a qualquer pessoa, nem mesmo ao que era minha até então esposa. Enxergava nela todas os mais cruéis pensamentos de uma mulher louca, má e perversa, e qualquer afirmação onde eu dizia que já havia esquecido do ocorrido era uma mentira.
Já com pressa, pois minha esposa havia acordado e desejava sair para jantar, fui atrás das redes sociais da mulher louca, então, me deparei com o maior horror: dezenas de fotos de seus filhos — a própria dona da conta sequer aparecia —, textos e declarações de amor gigantescas para seu gato — um gesto tão belo, uma vez que eu jamais havia visto alguém dizer "eu te amo" a um gato, textos educativos muito bem escritos sobre corpos gordos e negros feitos por ela e mensagens sobre amar o próximo e solidariedade.
Tal revelação soou como um espancamento, não apenas dos pensamentos racistas e gordofóbicos, mas também ao perceber que a vilã caricata de minhas fantasias mais desumanizantes e monstruosas em minha cabeça ainda era uma pessoa.
Claramente eu não estava bem para jantar em algum restaurante de luxo, mas a mulher que não me abraçou quando eu mais precisava jamais perceberia, então saimos mesmo assim.
Toda vez que me perguntam o que temo, lembro destes dois dias e respondo: tenho medo de vampiros e tremo ao ver qualquer coisa relacionada a eles. É uma resposta muito mais fácil de desenvolver do que meus verdadeiros medos. Tenho medo de minha própria humanidade.Tenho medo da minha própria inocência, doçura e infantilidade. Tenho medo de não ser amada como mereço, e Ah! Como mereço. Tenho medo do amor. Tenho medo do ódio. Tenho medo da crueldade dos homens bons. Tenho medo do amor dos homens maus. Tenho medo da beleza da vida. Tenho medo do sofrimento. Tenho medo de mim mesma, e principalmente: meus olhos tremem com a possibilidade de um dia, nossas sombras se tornarem maiores do que nossas almas.
Charlotte, que texto devastador — no melhor e mais honesto sentido da palavra.
A forma como você costura o íntimo com o insuportável, o humano com o monstruoso, é brutal e belíssima.
Porque o medo, como você mostra, não mora só no que vem de fora. Mora nas frestas. Nas sombras que carregamos e fingimos que não vemos.
E o mais corajoso aqui não é o que você admite sobre os outros, mas o que ousa reconhecer sobre si.
Obrigado por escrever com essa visceralidade que sangra e, ainda assim, segue oferecendo abrigo.
Você merece, sim, ser amada como escreve: com verdade.